O Caminho para Entender a Bondade
por Jigmed Tromge Rinpoche
por Jigmed Tromge Rinpoche
Seres sencientes são como nossas mães.
Todos os seres sencientes, que estão sujeitos às percepções impostas pelo seu próprio carma negativo, pelo seu padrão habitual e pelas emoções aflitivas de suas mentes, que encontram apenas sofrimento como resultado dessa confusão e ilusão, foram nossas mães muitas vezes seguidas.
Dentro da tradição budista, temos tanto a autoridade dos textos sagrados quanto o raciocínio correto para atestar esse fato. Em um do sutras, Buda declarou que se alguém contasse todas as partículas de terra deste nosso grande planeta, o número de vezes que um único ser foi nossa mãe seria maior que aquele número de partículas. O grande Nagarjuna da Índia budista condensou o mesmo exemplo em um verso, em uma de suas obras.
Se analisarmos, podemos perceber que certos tipos de seres, a bem da verdade, renascem milagrosamente. Os seres dos infernos e os deuses, entram nos seus mundos completamente formados, sem passar pelo processo de nascimento pelo útero ou pelo ovo, sem precisar ter pais.
Mas, no caso de outros seres, certamente os seres que nós podemos ver diretamente com nossos olhos, seres humanos e formas de vida animal, passam por um processo através do qual macho e fêmea procriam e se tornam os pais de uma nova geração. Até mesmo as formigas em um formigueiro, cujo número nem podemos começar a contar, vêm de ovos e esses ovos vêm de uma mãe. Outras inúmeras formas de vida estão renascendo continuamente e, em geral, envolvem a interferência de uma mãe, concebendo e sustentando uma criança, ou, botando um ovo que produz um descendente.
Reconhecer esta situação incrível, na qual todo ser foi tantas vezes nossa mãe, é reconhecer que todo ser foi carinhoso, gentil e preocupado conosco como nossos pais nesta vida.
Há muitas maneiras básicas pelas quais nossa mãe nos mostrou bondade. Em primeiro lugar, ela nos deu nosso corpo físico. Antes de sermos concebidos, nossa consciência estava vagando no bardo (o estado intermediário entre morte e renascimento), sem corpo, sem qualquer lugar de descanso. Não havia nenhuma comida para comer, entretanto nossa mente podia experimentar fome, nenhuma roupa para vestir, entretanto nossa mente podia experimentar o frio. Não havia riqueza, nenhuma segurança, nada em que pudéssemos confiar. Era um estado aterrador, de confusão absoluta. Mas no momento da concepção, nossa consciência entrou no útero de nossa mãe e se uniu com o esperma de nosso pai e o ovo de nossa mãe. Dando-nos um corpo físico, nossa mãe nos deu segurança, alguma base para felicidade, uma suspensão temporária do bardo.
Muitas coisas são necessárias para levar uma criança a termo. A mãe tem que evitar certas atividades e certas substâncias que poderiam prejudicar a criança. Ela tem que ter muito cuidado para observar restrições que podem não ser de seu agrado. Muito das substâncias nutritivas da comida que a mãe ingere durante a gravidez vai para a criança, e o próprio corpo dela sofre. Os textos tibetanos comparam a criança ao pavio de uma lamparina que absorve todo o óleo, queimando-o com incrível rapidez. Mas ela está disposta a fazer esses sacrifícios para o bem de seu filho que está por vir. Nossa mãe não apenas nos trouxe a este mundo, mas também cuidou para que sobrevivêssemos e nos desenvolvêssemos da melhor forma possível.
O que querem todos os seres que nos mostraram esta grande bondade maternal? Querem simplesmente ser felizes, mas não sabem como. O grande Shantideva da Índia escreveu: "Embora todos desejem ser felizes, na sua ignorância, combatem a própria felicidade como se fosse seu pior inimigo." Qual é a verdadeira causa da felicidade? A verdadeira causa da felicidade é a virtude, que quer dizer fé, que quer dizer desejo de libertar a si mesmo e aos outros do ciclo de renascimentos, que quer dizer boditchita: a preocupação amorosa e compassiva com o bem-estar dos outros. Todas são qualidades virtuosas da mente. Os resultados dessas qualidades virtuosas e as ações que são motivadas por elas, geram, a curto prazo, um grau mais alto de renascimento como um deus ou um humano, e, por último, o estado búdico.
O Sofrimento dos Seres Sencientes
É muito difícil para os seres descobrirem o caminho puro da virtude, e uma vez descoberto, é muito difícil nele permanecer, pois há tantas tendências negativas e prejudiciais em nossa mente que continuamente somos desviados do caminho. E assim, embora os seres ignorantes busquem felicidade, com seus esforços só fazem afundar mais e mais profundamente no lodo do sofrimento, como alguém que corre para a areia movediça.
Todos os seres sencientes sofrem uma variedade inconcebível de dor e sofrimento. No reino dos infernos, eles sofrem calor e frio intensos. No reino dos pretas, ou espíritos atormentados, a fonte primária de sofrimento é a privação devido a intensa fome e sede. No reino animal, o sofrimento principal é imposto pela estupidez e pela ignorância que forçam os animais a atacar outros, a servir os humanos, ou, de algum outro modo, a serem dominados por outras espécies. No reino humano, as formas primárias de sofrimento são nascimento, velhice, doença e morte. No reino dos semideuses, o sofrimento primário acontece devido ao intenso ciúme e às disputas e discussões que ele gera. E no dos devas, ou reino dos deuses, a fonte principal de sofrimento é rebaixar desse estado relativamente alto para estados mais baixos e dolorosos.
Se falarmos sobre sofrimento de um modo mais sucinto, poderemos observar que ele se manifesta em nossa própria experiência de três modos básicos: há o sofrimento da mudança, sobre o sofrimento e um nível sutil de negatividade e sofrimento que tudo permeia.
O primeiro tipo, o sofrimento da mudança, ocorre porque tudo, por natureza, é impermanente. Por exemplo, você poderia acordar feliz numa manhã, mas por volta do meio-dia pode ter ouvido algo ou pode ter encontrado algo que mudou tudo completamente e o fez infeliz. A felicidade que você sentiu pela manhã se foi, tudo mudou.
O segundo tipo de sofrimento, o sofrimento sobre o sofrimento, é muito mais desagradável de se falar porque é o sofrimento seguido de outro sofrimento. A perda de um de seus pais, por exemplo, poderia ser seguida imediatamente pela morte de outra pessoa muito próxima que é seguida imediatamente por alguma outra tragédia. Talvez você perca sua fortuna, e, ainda por cima, alguma outra circunstância ruim surge em sua vida. É uma coisa atrás da outra.
O terceiro tipo de sofrimento é muito mais sutil. Você pode pensar consigo mesmo, "Minha vida está baseada em ações positivas; não cometo nenhuma ação prejudicial. Tenho o suficiente para pôr no corpo, tenho bastante comida para comer, e estou contente com isso". Mas ainda há algum nível de envolvimento com o sofrimento e com ações negativas que não podemos evitar. Por exemplo, para que o arroz que você come tenha chegado a sua mesa, foi plantado, foi colhido e foi processado. Durante cada um desses passos, seres sencientes estavam sendo mortos, por exemplo, insetos. Carma negativo estava sendo gerado, ainda que inadvertidamente. Há um nível de sofrimento subliminar que atinge tudo que nós entramos em contato neste mundo.
Como seres não-iluminados, somos capturados pelo sofrimento assim como a traça é atraída pela luz de uma vela, para morrer na chama; do modo que um cervo é atraído pelo som de uma flauta que o leva para onde o caçador está escondido esperando-o; do modo que uma abelha é atraída pelo cheiro de uma flor carnívora, só para ficar presa na planta e morrer; do modo que um peixe é atraído pela isca deliciosa no anzol, só para ser empalado; do modo que um elefante busca o frescor da lama no sol do meio-dia e então não pode escapar. É por causa de nosso apego e de nosso desejo que nós, como seres ignorantes, estamos sofrendo continuamente.
É muito importante entendermos que todo ser que foi nossa mãe em alguma época, é atormentado por esse sofrimento, pois isto imprime em nós a necessidade de usarmos nossa existência humana preciosa da melhor forma possível, para retribuir a bondade de cada um desses seres. Por essa razão mantemos em nossa prática uma consciência do fato que todos os seres foram nossas mães, uma consciência da bondade deles, uma intenção de retribuir sua bondade, uma consciência profunda e uma empatia pelo seu sofrimento.
Entendendo o sofrimento dos seres, damos origem à boditchita que tem um aspecto relativo e um aspecto absoluto. O aspecto relativo consiste em duas categorias: aspiração e empenho.
Aspiração compreende perceber a igualdade entre nós mesmos e os outros, colocando-nos no lugar dos outros, fazendo uma troca na qual o bem-estar dos outros fica mais importante para nós do que nosso próprio bem-estar. Há um tipo de desenvolvimento aí. O empenho na boditchita relativa é expressado naquilo que é chamado de as "Seis Perfeições": generosidade, disciplina, paciência, diligência, estabilidade meditativa e sabedoria.
Quando pela primeira vez damos origem à boditchita como um passo formal no caminho, o fazemos num contexto ritual no qual um professor transmite o voto de bodisatva em uma cerimônia formal. O objetivo disto é nos conduzir ao caminho da visão por meio da qual a verdadeira natureza da realidade fica diretamente evidente, o que é o aspecto supremo de boditchita. Isso não depende de uma cerimônia, mas da nossa própria transformação interna através da prática.
Em todos os ianas budistas, ou abordagens espirituais, inclusive no verdadeiro pináculo das abordagens, é dada muita importância a essas qualidades da mente que nós chamamos as "quatro atitudes incomensuráveis": amor, compaixão, regozijo e equanimidade. Quando examinadas teoricamente, essas atitudes são discutidas nesta ordem. Mas quando estamos na verdade fazendo uma prática espiritual, é importante começar com a equanimidade.
Equanimidade
A palavra tibetana para equanimidade é tang nyom. Tang significa literalmente "resposta", algo que a pessoa está enviando. Nosso modo normal de responder é decidir que certas pessoas são nossas inimigas, ou, que certas situações são ameaçadoras e reagir a elas com ódio, fúria, ciúme ou inveja, ou decidir que outras pessoas são nossas queridas amigas e responder a elas com apego ou possessividade. A idéia de tang nyom é a de uma resposta igual, ou equânime. Significa responder a todos os seres, em qualquer situação, sem apego ou aversão, sem preconceito ou juízo de valor.
Como praticantes temos que perceber que nenhuma situação em que possamos nos encontrar, em qualquer momento, tem garantia de permanecer a mesma. Por exemplo, uma família pode se dar muito bem até um certo ponto, mas, então, acontece uma completa discórdia e desarmonia, os filhos não escutam os pais, há todos os tipos de problemas e os membros da família acabam detestando a simples visão um dos outros; entretanto, antes disso, havia aquela conexão positiva poderosa que parecia tão estável e segura.
Pode muito bem acontecer, devido à poderosa conexão cármica, que um inimigo nesta vida renasça como nosso melhor amigo na próxima. Um inimigo não é sempre um inimigo. Alguém que parece ser seu inimigo pode, por suas ações, gerar circunstâncias nas quais você entra em contato com o Darma, o que será de enorme benefício – a melhor coisa que jamais lhe aconteceu. Agora, aquela pessoa é um inimigo ou não? Assim, sempre responder a uma pessoa que está se comportando de um modo muito negativo com você como se ela fosse sua inimiga não faz sentido.
Seu amigo mais íntimo pode acabar sendo seu pior inimigo na próxima vida. A única coisa importante é que há uma conexão cármica poderosa entre vocês. Se é positiva ou negativa é algo que nós não podemos predizer. Nada é estável ou previsível.
Um grande mestre budista cujo nome era Katyayana, uma vez viu uma mulher segurando uma criança no colo e comendo um peixe, enquanto um cachorro tentava abocanhar, atirando-se contra ela e implorando por comida. Ela espantou o cachorro para longe e então lançou-lhe os ossos e ele começou a devorá-los. O mestre pode ver com a sua grande percepção que a criança tinha sido a pior inimiga da mulher em uma vida anterior, que o peixe tinha sido seu pai e que o cachorro tinha sido sua mãe. Katyayana disse: "Ver alguém comendo a carne de seu pai e batendo na mãe, ver uma esposa que rói os ossos do seu marido e ver alguém segurando o pior inimigo no colo como se fosse o seu ente mais próximo e querido – o samsara é verdadeiramente absurdo!"
A imprevisibilidade do samsara não está limitada aos seres ordinários. Até mesmo os seres altamente realizados estão sujeitos a isto, pelo menos em um nível convencional. Por exemplo, enquanto o grande mestre Padmasambava estava ensinando no Tibete a convite do rei de Darma, Trisong Detsen, a filha mais jovem do rei morreu. O rei estava muito confuso, porque tendo nascido filha de um rei poderoso, e tendo conhecido o grande mestre Padmasambava, ela deveria ter tido um carma verdadeiramente bom. Por que, então, perguntou ele para Padmasambava, era necessário que ela morresse tão jovem?
Padmasambava respondeu: "Ela não renasceu como sua filha devido a seu bom carma. A razão data de uma vida muito anterior, quando você e eu éramos irmãos e estávamos ocupados construindo a grande estupa de Boudhanath. Um dia, uma mosca lhe picou. Você a esmagou e matou, estabelecendo uma dívida cármica entre vocês. A consciência da mosca, no fim, renasceu como sua filha. O fato dela ser sua filha não tem relação com o fato de você ser um grande e poderoso rei mas sim, de você ter esmagado aquela mosca em uma vida passada." Esse era o rei do Darma que Padmasambava predisse que seria um bodisatva de oitavo nível. Ele não era uma pessoa comum, mas alguém com realização espiritual muito elevada, que não obstante descobriu que a imprevisibilidade do carma também era parte da vida dele.
O passaporte para a prática espiritual é estar atento a esta qualidade do carma. Quando começarmos a praticar, é importante que meditemos primeiro sobre nossos inimigos, aqueles a quem normalmente odiaríamos ou gostaríamos de eliminar de nossas vidas, e sermos hábeis para desenvolver uma preocupação sincera pelo bem-estar deles. Então podemos meditar sobre pessoas por quem nos sentimos neutros ou apáticos. E então podemos meditar sobre aqueles a quem somos muito ligados. Finalmente, podemos estender nosso foco além do reino humano para o reino animal, para o reino dos pretas, para o reino dos deuses, e assim por diante, desenvolvendo gradualmente uma resposta igual para todos os seres. Essa é a primeira qualidade das quatro incomensuráveis, a qualidade da equanimidade, e é importante começar por ela.
Amor
Amor, neste contexto, significa o desejo que os outros tenham felicidade e as causas da felicidade.
Há uma oração do mahaiana que diz: "Possam todos os seres ter felicidade e as causas da felicidade. Que eles possam estar livres do sofrimento e das causas do sofrimento.” A primeira linha expressa a atitude incomensurável de amor pelos seres sencientes. Todos os seres são idênticos em relação ao fato de quererem ser felizes. São idênticos nesse aspecto, eles não desejam sofrer. Mas permanecem fundamentalmente ignorantes em relação a como obter felicidade e evitar sofrimento. Todo o trabalho e esforço que fazem são impulsionados pelo desejo de serem felizes. À noite, sonham com essa felicidade. Mas não sabem como conseguí-la. E assim cultivamos a aspiração de que eles encontrem a felicidade que buscam.
Esse amor é uma qualidade que podemos expressar física, verbal e mentalmente. Expressamos fisicamente pela maneira como nos comportamos com os outros, até mesmo pela expressão em nosso rosto. Também expressamos isso com nossas palavras. Quando conhecemos alguém por quem sentimos uma antipatia imediata ou alguém com quem tivemos uma longa relação negativa, é difícil achar palavras agradáveis para dizer.
Mas como praticantes, quer estejamos falando com um amigo, um inimigo ou alguém a quem nos sentimos completamente neutros, tentamos dizer as mesmas palavras agradáveis, amáveis, honestas, em vez de usarmos palavras duras ou agressivas. Finalmente, expressamos nosso amor com nossas mentes, mantendo a atitude de querer beneficiar os seres que encontramos.
O grande Atisha da Índia, que colaborou para trazer o Budismo para o Tibete, disse: "Ser amável com um convidado que veio de longe, ou com uma pessoa que esteve por muito tempo doente, ou com seus velhos pais, ser amável com essas pessoas é como meditar sobre a vacuidade."
Compaixão
A terceira qualidade incomensurável, a compaixão, é expressada na frase da oração do mahaiana que diz: "Possam todos os seres estar livres do sofrimento e das causas do sofrimento."
Cultivamos a compaixão durante a meditação, nos colocando no lugar dos seres que estão sofrendo. Para começar com um exemplo muito ilustrativo, você poderia se imaginar como uma ovelha que é arrastada pelo açougueiro para o matadouro. É relativamente fácil de entender a dor e temor que o animal sente, enquanto cheira o sangue de outros animais mortos, sabendo que está sendo conduzido para a sua própria morte. Você poderia pensar: "Suponha que eu fosse uma ovelha que é arrastada impotentemente para a morte sem ninguém que me proteja ou que fique ao meu lado, a entrada para o bardo que se aproxima mais e mais à medida que o matadouro se aproxima. Como me sentiria?" Se imaginando naquela posição, você desenvolve um pouco de empatia, um pouco de sensibilidade com o sofrimento que aquele ser em particular está
experimentando.
O valor de cultivar compaixão em nossa meditação não deve ser subestimado. Um dos sutras diz: "Se você desejar despertar para o estado búdico, não se interesse por muitos Darmas diferentes; focalize em um Darma." Que Darma é esse? A grande compaixão. Tudo se volta para essa qualidade de compaixão, assim é o quanto ela é crucial para nossa prática.
Um exemplo da história da tradição budista na Índia ilustrará este ponto. O grande mestre indiano Asanga estava em retiro, meditando sobre Buda Maitreia, o bodisatva do futuro e da bondade. Ele praticou por mais de doze anos sem nunca ser agraciado por uma visão de Maitreia. Num certo ponto, desistiu e abandonou seu retiro. Ele se encontrou com uma pessoa que raspava uma grande barra de ferro de um lado para outro em uma pedra, para transformá-la em uma agulha. Ele pensou: "Se esta pessoa tem tanta diligência com algo tão mundano, quem sou eu para desistir do meu retiro?" Voltou ao retiro e praticou durante vários anos, mas sem qualquer resultado.
Novamente, ele deixou seu retiro e encontrou alguém que estava tentando desgastar uma montanha enorme com uma pena, porque a montanha impedia que a luz do sol chegasse à sua casa. Ele pensou consigo mesmo: "Se esta pessoa tem tanta diligência com algo tão mundano, como eu posso abandonar o meu retiro?" E então voltou ao retiro.
Quando, depois de outros doze anos, ainda não tinha tido nenhum sinal de estar mais próximo de sua meta, desistiu para sempre. Saiu do local de retiro e se encontrou com uma cadela deitada no caminho, e o corpo dela estava infestado com larvas de moscas. Ele foi tomado de tanta compaixão pela cadela que quis remover as larvas de inseto das feridas abertas no corpo dela; e também não quis ferir as larvas de inseto porque sentia compaixão também por elas. Assim, se ajoelhou e, repugnado pela visão da carne apodrecida da cadela, fechou seus olhos. Colocou sua língua para fora para lamber as larvas de inseto e retirá-las do corpo dela, mas, ao invés, a língua dele bateu no chão e quando abriu os olhos, Maitreia estava parado à sua frente : "Eu nunca estive muito longe" Maitreia lhe falou, "mas seu carma não foi suficientemente purificado para que você
me visse diretamente. Agora, com este ato de compaixão, seu carma foi purificado, e você está me vendo.”
me visse diretamente. Agora, com este ato de compaixão, seu carma foi purificado, e você está me vendo.”
Maitreia levou Asanga ao paraíso de Tushita, onde lhe conferiu os textos conhecidos como os Cinco Tratados de Maitreia, que Asanga trouxe de volta para o mundo humano e os difundiu. Tudo isso foi possível devido àquele momento de compaixão, que foi o ponto decisivo na prática de Asanga.
Regozijo
Como as outras, o regozijo é uma qualidade incomensurável porque o ponto de referência é o número incomensurável de seres sencientes. Regozijo neste contexto significa alegria com a felicidade dos outros. Por exemplo, se você relembra, sem um pingo de ciúme ou inveja, dos deuses que experimentam um incrível deleite e felicidade, glórias e prosperidade, e simplesmente se alegra com este pensamento, desejando que todos os seres pudessem ter as mesmas coisas, então você está praticando esse tipo de alegria.
Regozijo é um antídoto direto contra a inveja. Quando somos confrontados com o sucesso, felicidade ou prosperidade de alguém, podemos ou nos alegrar ou sentir inveja. Quando nossa mente é dominada pela inveja, é muito difícil apreciar as qualidades positivas dos outros, e então nos arriscamos a destruir as sementes de nossa liberação porque nossa inveja nos impede de desenvolver essas qualidades em nós mesmos. Não podemos alcançar a iluminação com nossa inveja. Foi a inveja que levou um estudante a envenenar Milarepa, que era um Buda. O estudante queria ser um professor próspero e rico, com muitos alunos. Sentindo que Milarepa o excederia em brilho, ele serviu iogurte envenenado a Milarepa, o que foi a causa incidental da sua morte.
Por causa de sua inveja, o estudante não pôde apreciar quaisquer das qualidades de Milarepa. Se não tivesse sido invejoso, não teria criado o carma que criou. Ele simplesmente não teria sido motivado a envenenar Milarepa.
Um dos parentes de Buda, Legpe Karma, foi por muitos anos atendente de Buda. Ele sempre memorizou tudo o que o Buda dizia, mas nunca fez qualquer uso positivo desses ensinamentos porque a mente dele estava cheia de inveja de Buda. Quando morreu, renasceu no reino dos pretas pois todo o conhecimento que tinha adquirido tinha sido corrompido pela inveja.
Resumindo: em nossa prática espiritual, tudo depende de nossa atitude básica, se é positiva ou negativa. Se nossa atitude for nobre, nosso caminho é nobre, e atingimos níveis nobres de realização. Se nossa atitude for negativa, nosso caminho é negativo e o que atingimos é apenas negativo. Nosso caminho e os níveis de nosso desenvolvimento são completamente dependentes da nossa atitude, à medida que seguimos o caminho.
Houve uma vez uma mãe e uma filha, que foram carregadas por uma inundação. Elas não eram praticantes; realmente não entendiam nada sobre Darma. Mas tão grande era a compaixão delas uma para com a outra que cada uma pensou: “Se só uma pudesse ser salva, de bom grado eu me afogaria". Como de fato aconteceu, ambas se afogaram, mas em razão de sua nobre motivação, imediatamente renasceram em um reino de deuses.
Houve um outro caso de um mendigo que tinha muita inveja do rei da sua região. Continuamente desejava que o rei morresse e que ele tomasse seu lugar. Isso era impossível, já que o rei tinha filhos e filhas que estavam na linha de sucessão para o trono e muitos ministros que nunca permitiriam que um mendigo comum ficasse com o trono. No entanto, a inveja era a motivação constante deste homem. Tudo o que aconteceu foi que, finalmente, um dia ele dormiu às margens de uma estrada e uma carruagem o atropelou, quebrou seu pescoço e o matou.
Revelando Nossa Natureza Búdica
Além das quatro qualidades incomensuráveis, as quatro contemplações que levam a mente para a prática – a existência humana preciosa, a morte e impermanência, o carma e os sofrimentos de samsara –, e a prática das Seis Perfeições, constituem a conduta de um caminho nobre que conduz à obtenção da iluminação. Mas quando pensarmos em nós mesmos como seres sencientes que atingem a iluminação, não deveríamos criar uma grande dicotomia em nossas mentes entre budas e seres sencientes. Não é como se nós começássemos em um certo lugar e fôssemos para longe, para nos tornarmos algo que não tem nenhuma relação com o que somos agora. Não há nenhuma distinção a ser feita entre um buda e um ser senciente, pois ambas as possibilidades existem agora mesmo em nossa mente.
Entretanto, agora não somos capazes de experimentar diretamente nossa natureza búdica. Se nós fôssemos, não precisaríamos praticar, e o caminho do pináculo da Grande Perfeição seria sem sentido. Mas como disse o excelso Longchenpa: "O solo que já é inerentemente iluminado precisa se tornar novamente iluminado através da realização." A realização não é uma forma comum de pensar; é a revelação direta de nossa inata natureza iluminada.
O que impede esse reconhecimento é nosso carma negativo e as distorções acidentais de nossas mentes. É como se um véu estivesse obscurecendo o fato fundamental de nossa iluminação. Uma vez afastadas essas distorções, aquilo que já era fica evidente. Nossa própria natureza iluminada é como um cristal embutido em pedra. Nós podemos ver a forma do cristal e sabemos que está lá, mas não podemos ver isto diretamente até lapidarmos a pedra e a polirmos, e então o cristal será revelado. Todas as atividades que participamos quando praticamos, resultam no processo de lapidar e polir a pedra, enquanto sabemos que o cristal está lá mas simplesmente não está evidente.
Treinando no Caminho
Existem diferentes escolas de pensamento budista sobre a natureza vazia dos fenômenos. Há as Escolas Iogacharia, que sustentam que todos os fenômenos são a mente. Ainda aqui há um conceito sutil de mente como alguma coisa existente. Há o Madiamika, ou Caminho do Meio, escola que diz: "A filosofia de Iogacharia tem um conceito sutil sobre natureza própria dos fenômenos; só a escola do Caminho do Meio tem verdadeira realização do não-ego da personalidade individual e da falta de natureza própria dos fenômenos"; e assim sucessivamente.
É verdade que há pontos filosóficos sutis a serem explorados no caminho do Budismo. Mas eles ficam mais evidentes à medida que prosseguimos pelas várias fases do caminho. O modo importante para começar é treinar nossas mentes cultivando as quatro qualidades incomensuráveis, e a boditchita; na base desse treinamento mental, está o empenho de se conseguir as duas acumulações, a acumulação de mérito e a de sabedoria primordial; e finalmente, dedicar a virtude, que é o resultado dessa prática, para o benefício dos outros.
Quando o grande Atisha da Índia foi convidado a ir ao Tibete, foi escoltado pelo grande tradutor de tibetano, Rinchen Zangpo. No caminho, Atisha começou a perguntar a Rinchen Zangpo o quanto ele sabia sobre Budismo. Rinchen Zangpo era um erudito imaculado, não havia nada que não soubesse no campo do Budismo. E Atisha ficou tão impressionado com as respostas dele que disse: "Bem, não há nenhuma necessidade que eu vá para o Tibete, eles já o têm. Como este tipo de conhecimento já existe lá, que necessidade eu tenho de ir?"
Mas, quanto mais Atisha indagava, mais longas e envolventes as respostas do tibetano se tornaram, e então Atisha percebeu que embora o conhecimento de Rinchen Zangpo fosse extenso, havia vácuos em seu treinamento. Afinal, Atisha disse: "Penso que, afinal de contas, preciso ir ao Tibete, pois você sabe muito, mas realmente não sabe sintetizar seu conhecimento para beneficiar a mente de um aluno." É muito bom ter um vasto cabedal de informações, mas se você não puder tornar isto acessível e útil para a prática, então está perdendo algo.
Sectarismo e Orgulho Espiritual
Quando fazemos prática budista, constantemente estamos nos referindo a todos os seres sencientes. É importante ter uma perspectiva ampla, imparcial, em relação a todos os seres, incluindo aqueles de outras escolas de Budismo tibetano. Precisamos entender que mestres de outras sangas merecem, da mesma maneira, tanto respeito e devoção dos seus alunos e trazem da mesma forma tanto benefício para eles quanto o(a) nosso(a) lama precioso(a) traz para nós.
Essa é uma expressão direta de nossa habilidade para perceber a igualdade de nós mesmos e dos outros; se nos colocarmos no lugar de outros, percebendo a importância do bem-estar dos outros acima do nosso próprio bem-estar. Preconceito sectário é veneno. Na realidade, todos os venenos da mente – desejo mental e apego, aversão, estupidez, orgulho e inveja–, estão contidos em atitudes sectárias. Como praticantes, temos que tentar muito profundamente não cair na armadilha de ser preconceituosos e tacanhos. Em vez disso, precisamos desenvolver uma visão abrangente.
Orgulho espiritual é outra falha contra a qual precisamos nos precaver. É como uma gota de veneno virulento que, adicionado a um prato de comida, estraga todo o alimento. Mesmo que você chegue a alguma compreensão ou tenha alguma experiência em sua prática, não se exiba.
Não ande por aí desfilando o que sabe. Se você se comportar assim, só assegurará que sua mente renascerá no inferno e que aquelas outras pessoas também participarão de seu carma negativo. Por exemplo, eles podem considerá-lo como um representante da tradição budista e dizer, "Bem, se isso é Budismo, não, obrigado". Ou podem desenvolver visões muito erradas sobre o Darma. Ou podem ficar impressionados com você e podem tentar imitar sua arrogância e orgulho espiritual e incorrer no mesmo tipo de carma negativo. Com nosso orgulho espiritual, acumulamos não só carma negativo para nós mesmos, mas para outros.
Assim, deveríamos reconhecer esta falha e todas as nossas outras falhas, e derrotá-las com nossa prática. Não temos que nos preocupar com o desenvolvimento de nossas qualidades positivas. Elas crescerão por si mesmas. Quando jogamos uma bola de borracha no chão, não precisamos levantá-la, ela salta automaticamente para o alto. Quanto mais subjugamos e eliminamos nossas próprias faltas com nossa prática, mais nossas qualidades positivas se expressarão espontaneamente.
QUE TODOS OS SERES POSSAM SE BENEFICIAR!
Este texto foi produzido a partir de uma cópia de um ensinamento dado por Jigmed Tromge
Rinpoche e traduzido por Richard Barron no Rigdzin Gatsal em março, 1992.
©fundação chagdud gonpa
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