Onde o Brasil cresce mais rápido
Impulsionados pela chegada de novas indústrias, aumento do consumo e pelo turismo, os estados nordestinos vivem um ciclo de expansão inédito
(Exame; Carolina Meyer)
(Exame; Carolina Meyer)
Ao longo de sua história, o Nordeste brasileiro experimentou raros períodos de exuberância econômica. Seu primeiro grande momento ocorreu no século 17, com o ciclo da cana-de-açúcar. Datam dessa época a disputa entre as potências européias pelas riquezas da região e o domínio holandês em Recife, sob o governo do príncipe Maurício de Nassau, que transformou a capital pernambucana em uma das cidades mais prósperas do Brasil. A partir do século seguinte, o Nordeste começou a perder sua primazia para as províncias do Sudeste, particularmente Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, mergulhando numa espécie de limbo que o transformou em sinônimo de atraso, pobreza e desigualdade social e econômica. Por décadas, a região também foi palco de clientelismo e de um capitalismo de fachada, sustentado à base de iniciativas e dinheiro do governo. Mergulhados na pobreza e em taxas pífias de crescimento, os nordestinos não eram vistos como um mercado a ser explorado pelas empresas. Nos últimos sete anos, porém, o Nordeste tem assistido a um novo processo de desenvolvimento, completamente diferente dos anteriores. "É a primeira vez, desde o ciclo do açúcar, que a região passa por um processo de crescimento ancorado no setor privado", diz Tânia Bacelar, economista da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e ex-secretária de Políticas de Desenvolvimento Regional do Ministério da Integração Nacional.
Desde 2001, a economia nordestina vem crescendo a taxas superiores à média nacional. Enquanto a média da região foi de 4,2% nesse período, o país cresceu 2,3%. Se fosse um país isolado do resto do Brasil, o Nordeste hoje teria um crescimento semelhante ao da Irlanda. No caso de estados como Bahia e Pernambuco, as taxas de crescimento são ainda mais agressivas, da ordem de 7% -- ou algo equivalente à expansão econômica da Índia ou da Tailândia. A Bahia não é a Índia. Pernambuco não é a Tailândia. O PIB total do Nordeste é de 250 bilhões de reais -- o equivalente ao do estado do Rio de Janeiro sozinho. Mas, tal como acontece em parte das economias asiáticas, esses índices de crescimento vêm mudando a realidade da região. A expansão do consumo foi de 8% em 2006. Alguns analistas acreditam que pode chegar a 20% neste ano, a maior taxa da história. O crescimento da renda per capita é inédito e a região, que concentra 52 milhões de habitantes, ou quase um terço da população brasileira, tornou-se o maior pólo de atração de empresas -- especialmente as ligadas ao setor de consumo de massa. Estima-se que mais de 2 000 companhias de médio e grande porte tenham se estabelecido na região nos últimos cinco anos, provocando uma lufada de renovação no ambiente de negócios. Segundo cálculos baseados em dados do Banco do Nordeste, os investimentos privados na região entre 2001 e 2006 decuplicaram, passando de 300 milhões de reais para mais de 3 bilhões de reais -- o que gerou cerca de 1,2 milhão de novos empregos, entre diretos e indiretos. Corporações como Nestlé, Kraft, Perdigão, Unilever, Arcor e Whirlpool ampliaram substancialmente sua presença na região, seja pela construção de novas fábricas, seja pela ampliação das já existentes.
Ao contrário do que Brasília imagina, esse ciclo de prosperidade da economia nordestina não começou neste governo e tampouco teve suas origens na distribuição do Bolsa Família, o programa assistencialista da administração petista. Há uma conjunção de fatores que faz com que a região experimente esse período de crescimento. Para explicar o início dessa espécie de "milagre nordestino", é preciso retroceder mais de uma década no calendário. Segundo os especialistas no desenvolvimento da região, duas razões foram fundamentais para o crescimento registrado hoje. A primeira foi a estabilidade alcançada pelo Plano Real, em 1994. Com o fim da inflação, boa parte da população nordestina rompeu a barreira da miséria e pôde, anos depois, entrar na sociedade de consumo. "A maioria da população do Nordeste não possuía nem conta bancária. Seu salário era corroído mês a mês", afirma o economista Antonio Wilson Ferreira Menezes, da Universidade Federal da Bahia. Outro ponto crucial foi o fluxo de empresas provocado pela "guerra fiscal", a redução de impostos orquestrada pelos governos es taduais para atrair grandes grupos empresariais. O movimento, que reduziu alíquotas como o ICMS em até 90%, gerou muita reclamação nos estados do Sul e do Sudeste, mas foi o responsável pela chegada (ainda que tardia) de manifestações do "capitalismo" ao Nordeste.
Tome-se o exemplo de Camaçari, na Bahia. Desde 1978, a cidade gravitava em torno de um importante pólo petroquímico, cuja maior empresa hoje faz parte do grupo Braskem. Há seis anos, porém, as indústrias de base instaladas na região ganharam a companhia da nova fábrica da Ford -- fruto típico da guerra fiscal. Com a chegada da montadora americana, iniciou-se uma transformação em Camaçari. A renda per capita dos 170 000 habitantes aumentou 150% nos últimos cinco anos. Foram criados centenas de pequenos negócios e o cresci mento da cidade, estagnado durante anos, foi de 14% em 2006. Depois da Ford, outras grandes empresas resolveram se instalar na região, a maioria formada por fornecedores da montadora. Uma delas é a alemã Continental, que investiu 500 milhões de reais para construir em Camaçari uma das fábricas de pneus mais modernas do mundo. Essas unidades são todas de última geração, uma característica da recente industrialização do Nordeste. A Ford, por exemplo, investiu 1,2 bilhão de dólares no complexo, o maior aporte já feito pela empresa numa fábrica fora dos Estados Unidos. Na unidade baiana -- cuja produtividade é uma das maiores entre as montadoras instaladas no Brasil, com 84 veículos produzidos por funcionário ao ano -- está um dos cinco centros mundiais de desenvolvimento de produtos da empresa. Na alemã Continental, 800 empregados irão produzir 18 milhões de pneus por ano. Para efeito de comparação: na Romênia, onde a empresa se instalou em 2004, o mesmo contingente de funcionários produz metade desse volume. Em Feira de Santana, na Bahia, a nova unidade da Nestlé fabricará vários tipos de produto. Serão contratadas, no total, 250 pessoas diretamente. Não são vagas desprezíveis. Mas é evidente que a indústria não é a principal responsável pela geração de empregos no Nordeste brasileiro.
Foi o turismo, um setor de mão-de-obra intensiva, que fez com que o motor da economia entrasse em combustão, com a abertura de milhares de postos de trabalho e a conseqüente geração de renda. Grupos de vários países (em especial da Espanha e de Portugal) estão investindo pesadamente nos estados nordestinos. Segundo um levantamento feito pelo Anuário de Turismo EXAME, o Nordeste deve receber 74% dos investimentos no setor hoteleiro esperados para os próximos cinco anos no Brasil. No total, serão quase 5 bilhões de reais. Só na Bahia, que concentra 29% de todos os investimentos previstos para o país, serão gerados cerca de 23 000 novos empregos. A construção civil na região passa por uma expansão sem precedentes. Boa parte dos empreendimentos voltados para o turismo prevê, além de hotéis, a construção e a venda de imóveis, um mercado voltado para o público europeu. "É uma tendência internacional que começa a ganhar fôlego no Nordeste", diz o consultor José Ernesto Marino, da BSH International. "É a chamada segunda onda do turismo."
Não são apenas os grandes grupos internacionais que lucram com esse fluxo. Um turbilhão de pequenos e médios negócios passou a se beneficiar da chegada desses recursos. Histórias como a do empresário potiguar Evilásio Crisanto de Morais, de 43 anos, que aparece ao lado de sua família na página 128, estão se multiplicando. Morais prosperou nos últimos anos ao concentrar seus negócios exatamente em turismo e no setor imobiliário. Desde os 17 anos, ele trabalha com compra e venda de imóveis. No início, sua imobiliária negociava apenas pequenos imóveis nas redondezas de Natal, por anos um negócio visto como "pouco promissor". A virada na vida de Morais e de sua família ocorreu há quase uma década, quando ele vendeu um imóvel a um europeu interessado em construir uma casa numa praia próxima a Natal. Depois, veio outro estrangeiro, e mais outro. Vendo a oportunidade tomar corpo, Morais especializou-se em vender imóveis a europeus interessados em passar boa parte do ano no litoral do Rio Grande do Norte. Hoje é um dos empresários mais bem-sucedidos em seu ramo. Chega a vender 70 casas por mês -- a preços que podem atingir até 140 000 dólares. Atualmente, Morais mora numa ampla casa com piscina, num condomínio em bairro nobre de Natal. "Nunca imaginei que fosse vender tantos imóveis aos gringos", diz.
O atual ciclo de desenvolvimento do Nordeste guarda uma peculiaridade. Além de dinamizar as capitais, uma pujança inédita vem sendo experimentada por áreas distantes do litoral, em meio ao sertão nordestino. Ao todo, a Região Nordeste conta com 23 novos pólos de desenvolvimento, entre industriais e agrícolas. Metade deles fica no interior e quase todos têm a exportação como foco principal. Graças a investimentos na modernização do porto de Suape, essa produção, que movimenta 80 bilhões de reais por ano, pode ser escoada com mais facilidade. Centros produtores de calçados, têxteis, petroquímicos e de agronegócio -- especialmente os de soja e frutas -- vêm se beneficiando do aumento do comércio exterior. São lugares como Santa Maria da Boa Vista, a 640 quilômetros de Recife, que se desenvolvem a reboque da produção de uva no Vale do Rio São Francisco. A cidade, de 40 000 habitantes, tem hoje uma taxa de crescimento da ordem de 10%. Além de Boa Vista, há pelo menos outras 11 cidades (veja quadro ao lado) localizadas no interior nordestino que vêm crescendo graças às exportações. No mesmo ritmo, avançam municípios como Balsas, no Maranhão, que tem crescido em média 21%, e Uruçuí, no Piauí, com taxas de 13%. Ambos têm suas economias baseadas no plantio de soja. Com 70 000 habitantes, Balsas está a 650 quilômetros da capital, São Luís, e tem PIB médio anual de 500 milhões de reais, o que garante uma renda per capita média de 7 000 reais (um assombro para a região). Uruçuí tem 18 000 habitantes e fica a 452 quilômetros da capital, Teresina. Entre os investimentos recentes na cidade está a instalação de uma unidade de processamento de soja do grupo Bunge, em 2003, que custou 100 milhões de reais.
Mas nenhuma dessas cidades, localizadas no cinturão de desenvolvimento do interior, experimentou uma transformação tão grande quanto o município de Luís Eduardo Magalhães. Situado no extremo oeste da Bahia, fica a 950 quilômetros da capital e simplesmente não existia há dez anos. Colonizado por agricultores gaúchos, o lugar era um distrito da cidade de Barreiras, chamado Mimoso do Oeste. Hoje é um dos mais pujantes centros de produção de soja do país. A cidade cresce ao ritmo de 18% ao ano e em 2006 gerou uma receita estimada em 1,1 bilhão de reais. Gigantes como as multinacionais Bunge e Cargill mantêm filiais em Luís Eduardo Magalhães e o agronegócio gera 18 000 empregos diretos e 50 000 indiretos. Depois do ciclo da soja, a cidade se prepara agora para embarcar no sucesso do etanol. Parte das plantações de soja começa a ser substituída por cana-de-açúcar e duas usinas para produção de álcool devem ser construídas até 2009. Nos últimos cinco anos, o valor da terra em Luís Eduardo Magalhães triplicou e chegou a 6 700 reais por hectare, o mesmo valor de estados como Mato Grosso e Tocantins. Fenômeno semelhante tem acontecido por toda a área agrícola do Nordeste. O preço das terras no Piauí, por exemplo, subiu 300% nos últimos três anos.
Guardadas todas as proporções, muitos homens de negócios vêm comparando a ascensão do Nordeste com a expansão chinesa. Nomes como Márcio Utsch, presidente da Alpargatas, e Luís Carlos Campagnola, diretor comercial da Perdigão, já se utilizaram dessa imagem para se referir ao que vem acontecendo com suas vendas na região. Entende-se a analogia porque o Nordeste vem representando para o resto do Brasil aquilo que a China representa para o resto do mundo: um lugar com mão-de-obra mais barata e um mercado consumidor que não se pode desprezar. Mas o fenômeno nordestino, segundo estudiosos no assunto, guarda mais semelhanças com outro acontecimento na história do desenvolvimento das nações: o avanço da indústria americana em direção ao Meio-Oeste dos Estados Unidos, no século 19. "Esse ciclo de migração das indústrias para o Nordeste tem razões semelhantes às do movimento americano, quando as indústrias baseadas na Costa Leste, por volta do ano 1830, atingiram um ponto de saturação de mercado e avançaram em direção ao Meio-Oeste atrás de novos consumidores e taxas de expansão mais aceleradas", diz Marcos Gouvêa de Souza, da consultoria Gouvêa de Souza & MD, de São Paulo.
Atrás de taxas anuais de crescimento de dois dígitos, as empresas de bens de consumo têm aumentado sua presença no Nordeste. Um estudo da consultoria Gouvêa de Souza & MD mostrou que, na região, para cada 1 real que sobra do salário no final do mês, 0,78 centavo é gasto na compra de itens de consumo -- que variam de uma geladeira a um pacote de biscoitos, passando por celulares, aparelhos de DVD e marcas caras de sabão em pó. No Centro-Sul, esse índice cai para 0,55 centavo. O impacto desse tipo de comportamento pode ser sentido no índice de expansão do varejo. Ainda segundo a Gouvêa de Souza, o Nordeste foi a região brasileira que apresentou o maior crescimento do varejo em 2006: 14%. Tal ritmo faz com que a região já responda por um terço do faturamento do Wal-Mart no Brasil e teve papel preponderante no fato de a rede ter chegado ao segundo lugar no ranking dos maiores supermercadistas brasileiros. "O Nordeste ficou abandonado durante muitos anos", afirma Wilson Melo, diretor do Wal-Mart para o Nordeste. "Há muito por fazer." No ano passado, a rede abriu sete lojas na região. Neste ano, das 28 novas unidades que o Wal-Mart pretende inaugurar no Brasil, 14 ficarão no Nordeste -- metade voltada para as classes C e D.
Nessa faixa de renda, aí, sim, começa a fazer diferença a criação de programas como o Bolsa Família. Isso porque mais da metade da população atendida pelo governo -- cerca de 5 milhões de famílias -- encontra-se na região. Somente em 2006 e 2007, mais de 10 bilhões de reais devem ser repassados para os estados do Nordeste. "De uma hora para outra, essas pessoas foram inseridas no mercado de consumo", afirma Johnny Wei, diretor da Nestlé para o Nordeste. A empresa acaba de inaugurar uma fábrica na cidade de Feira de Santana, a 100 quilômetros de Salvador, exclusivamente para abastecer o mercado regional. "É um número que não pode ser desprezado." Outros 5 bilhões de reais foram injetados na economia nordestina com o aumento real do salário mínimo da ordem de 20%, ocorrido nos últimos três anos. Quase metade da população economicamente ativa da região tem seus rendimentos atrelados ao mínimo -- o maior índice do país. "O Nordeste recebeu muito dinheiro em pouquíssimo tempo. O impacto é imediato", afirma Sérgio Vale, da consultoria MB Associados.
Apesar do rápido crescimento do mercado nordestino, as empresas ainda estão começando a aprender as peculiaridades desse consumidor. Muitos produtos de sucesso no Sul e no Sudeste tiveram de ser totalmente adaptados à realidade da região. Empresas como Kraft e Nestlé reduziram o tamanho dos pacotes de biscoitos para poder vendê-los a apenas 1 real. No caso da Kraft, foram criados sucos artificiais com sabores de frutas locais, como cajá. A Unilever passou a usar novas fragrâncias em seus produtos de limpeza quando percebeu que as consumidoras nordestinas não tinham as mesmas preferências das do Sudeste. Depois de uma pesquisa de mercado, a Nestlé desistiu de lançar um cappuccino, tipo de bebida pouco afeita ao calor que faz no local. "O clima muda completamente os hábitos das pessoas", afirma Wei, da Nestlé. "Ainda estamos aprendendo a lidar com esse mercado." Para tentar dar mais agilidade à tomada de decisões, os executivos da multinacional decidiram montar um escritório em Recife, Pernambuco, com 40 profissionais com experiência na região. Tudo para conquistar os clientes onde o consumo mais cresce no país, onde a renda per capita aumenta mais rápido, onde a expansão econômica é maior -- enfim, onde o Brasil cresce dois dígitos.
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